OUVIDO AFINADO (Parte II)
A SIMPLES ESCUTA DE COMPOSIÇÕES TONAIS TORNA MUSICALMENTE EXPERIENTE UM OUVINTE SEM FORMAÇÃO EM MÚSICA
Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças entre os cérebros de músicos e de não-músicos, postulamos que as redes neuronais postas em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro “músico”.
A idéia de que um cérebro “não-músico” possa ser expert no processamento das estruturas musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência (contrariamente à explícita, consciente).Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas de maneira passiva. Tal aprendizado implícito e inconsciente é fundamental para adaptação e sobrevivência da espécie. Além disso, é observado em todos os domínios e foi adquirido desde cedo no curso da evolução.
Os recém-nascidos passam por aprendizados de grande complexidade, tanto para a linguagem quanto para a música: quando bebês de alguns meses ouvem uma melodia, eles manifestam forte reação de surpresa no momento em que uma nota é substituída por uma outra que infrinja as regras musicais. Os bebês denunciam a própria surpresa sugando o seio mais rápido ou virando a cabeça para o lado de onde vem o som. Deduzimos que os circuitos neuronais envolvidos nas atividades musicais se organizam bem antes e independentemente de qualquer aprendizagem explicita da música.
É possível constatar também que uma rede de neurônios artificiais pode aprender de maneira passiva as principais regras de harmonia tonal se expostas a seqüências musicais que obedecem as regras dessa harmonia. Em tal rede, um conjunto de neurônios ditos “de entrada” recebe informações sobre as notas em forma de uma seqüência de 0 e 1. A rede “aprende” a identificar as configurações de notas que aparecem freqüentemente juntas. Assim acontece, por exemplo, com dó-mi-sol, que formam o acorde dó maior, muito comum na música ocidental. A rede se habilita a ligar todas as notas às configurações harmônicas possíveis no estilo da música apresentada. No caso da música ocidental tonal, ela aprende as relações musicais possíveis entre as notas e os acordes, depois entre as notas, os acordes e as tonalidades. Com isso, poderá simular as organizações musicais percebidas pelos ouvintes familiarizados com esses sistemas musicais. Se uma rede artificial realiza em algumas horas essa aprendizagem, por que uma rede natural de neurônios, mais elaborada, não o faria também sendo exposta no cotidiano à música tonal? Por conseguinte, a simples escuta da música ocidental tonal torna musicalmente experiente um ouvinte sem formação em música.
O problema é saber se as aptidões musicais que se desenvolvem naturalmente podem ser tão elaboradas quanto as dos músicos que seguiram um longo processo de formação. Quando se conhece a potência dos mecanismos de aprendizagem implícita, antecipa-se uma resposta positiva a essa questão. Para confirmá-la, comparamos as competências dos ouvintes músicos, isto é, estudantes no final de cursos de conservatórios nacionais e de estudantes da mesma idade sem formação musical.
PERFORMANCES EQUIVALENTES
Testamos diferentes aspectos da percepção musical: avaliamos se percebiam relações entre um tema e variações sobre esse tema; se notavam diferenças entre as funções tonais e harmônicas, se compreendiam substituições harmônicas (um acorde é substituído por outro sem mudar a música); se observavam quando um trecho desenvolve um tema ou não; se trechos musicais suscitavam as mesmas reações emocionais (os participantes deveriam dizer se os consideravam tristes, alegres, elevados, intensos). Estudamos também como percebiam estruturas musicais contemporâneas.
Para comparar esses ouvintes especializados àqueles sem formação, tomamos o cuidado de afastar todo método que se apoiasse na utilização de termos específicos da técnica musical ou sobre exercícios de escuta aos quais os músicos foram acostumados durante seus estudos. Utilizamos métodos de psicologia experimental que avaliam as aptidões musicais implícitas dos ouvintes.
Um deles é um método de incitação: explicamos aos participantes que iriam ouvir um trecho musical cantado em fonemas (sílabas) artificiais desprovidos de sentido (para que isso não influenciasse a resposta). Pedimos que indicassem o mais rapidamente possível se o acorde que terminava a seqüência musical era cantado no fonema /di/ ou /du/. Focalizamos assim sua atenção nessa ordem e estudamos como a realização dessa tarefa era perturbada pelo tipo de acorde apresentado no fim da seqüência. A diferença de função musical entre esses dois acordes é muito tênue e pensamos que apenas os músicos seriam sensíveis a ela.
O AUTOR
Emmanuel Bigand, professor de psicologia cognitiva, dirige o Laboratório de Estudos de Aprendizagem e do Desenvolvimento, UMR 50222, da Universidade de Bourgogne, em Dijon, França.
Com base na constatação de que existem muito mais similaridades que diferenças entre os cérebros de músicos e de não-músicos, postulamos que as redes neuronais postas em jogo nas atividades musicais se desenvolvem mesmo na ausência de um aprendizado intensivo. Em outras palavras, a simples escuta (e não a prática) basta para tornar o cérebro “músico”.
A idéia de que um cérebro “não-músico” possa ser expert no processamento das estruturas musicais surpreende. Trata-se, no entanto, de uma conclusão apoiada em numerosos estudos feitos sobre a aprendizagem implícita, isto é, aquela de que não temos consciência (contrariamente à explícita, consciente).Essas pesquisas demonstraram a extraordinária capacidade do cérebro de interiorizar as estruturas complexas do ambiente, mesmo quando só estamos expostos a elas de maneira passiva. Tal aprendizado implícito e inconsciente é fundamental para adaptação e sobrevivência da espécie. Além disso, é observado em todos os domínios e foi adquirido desde cedo no curso da evolução.
Os recém-nascidos passam por aprendizados de grande complexidade, tanto para a linguagem quanto para a música: quando bebês de alguns meses ouvem uma melodia, eles manifestam forte reação de surpresa no momento em que uma nota é substituída por uma outra que infrinja as regras musicais. Os bebês denunciam a própria surpresa sugando o seio mais rápido ou virando a cabeça para o lado de onde vem o som. Deduzimos que os circuitos neuronais envolvidos nas atividades musicais se organizam bem antes e independentemente de qualquer aprendizagem explicita da música.
É possível constatar também que uma rede de neurônios artificiais pode aprender de maneira passiva as principais regras de harmonia tonal se expostas a seqüências musicais que obedecem as regras dessa harmonia. Em tal rede, um conjunto de neurônios ditos “de entrada” recebe informações sobre as notas em forma de uma seqüência de 0 e 1. A rede “aprende” a identificar as configurações de notas que aparecem freqüentemente juntas. Assim acontece, por exemplo, com dó-mi-sol, que formam o acorde dó maior, muito comum na música ocidental. A rede se habilita a ligar todas as notas às configurações harmônicas possíveis no estilo da música apresentada. No caso da música ocidental tonal, ela aprende as relações musicais possíveis entre as notas e os acordes, depois entre as notas, os acordes e as tonalidades. Com isso, poderá simular as organizações musicais percebidas pelos ouvintes familiarizados com esses sistemas musicais. Se uma rede artificial realiza em algumas horas essa aprendizagem, por que uma rede natural de neurônios, mais elaborada, não o faria também sendo exposta no cotidiano à música tonal? Por conseguinte, a simples escuta da música ocidental tonal torna musicalmente experiente um ouvinte sem formação em música.
O problema é saber se as aptidões musicais que se desenvolvem naturalmente podem ser tão elaboradas quanto as dos músicos que seguiram um longo processo de formação. Quando se conhece a potência dos mecanismos de aprendizagem implícita, antecipa-se uma resposta positiva a essa questão. Para confirmá-la, comparamos as competências dos ouvintes músicos, isto é, estudantes no final de cursos de conservatórios nacionais e de estudantes da mesma idade sem formação musical.
PERFORMANCES EQUIVALENTES
Testamos diferentes aspectos da percepção musical: avaliamos se percebiam relações entre um tema e variações sobre esse tema; se notavam diferenças entre as funções tonais e harmônicas, se compreendiam substituições harmônicas (um acorde é substituído por outro sem mudar a música); se observavam quando um trecho desenvolve um tema ou não; se trechos musicais suscitavam as mesmas reações emocionais (os participantes deveriam dizer se os consideravam tristes, alegres, elevados, intensos). Estudamos também como percebiam estruturas musicais contemporâneas.
Para comparar esses ouvintes especializados àqueles sem formação, tomamos o cuidado de afastar todo método que se apoiasse na utilização de termos específicos da técnica musical ou sobre exercícios de escuta aos quais os músicos foram acostumados durante seus estudos. Utilizamos métodos de psicologia experimental que avaliam as aptidões musicais implícitas dos ouvintes.
Um deles é um método de incitação: explicamos aos participantes que iriam ouvir um trecho musical cantado em fonemas (sílabas) artificiais desprovidos de sentido (para que isso não influenciasse a resposta). Pedimos que indicassem o mais rapidamente possível se o acorde que terminava a seqüência musical era cantado no fonema /di/ ou /du/. Focalizamos assim sua atenção nessa ordem e estudamos como a realização dessa tarefa era perturbada pelo tipo de acorde apresentado no fim da seqüência. A diferença de função musical entre esses dois acordes é muito tênue e pensamos que apenas os músicos seriam sensíveis a ela.
O AUTOR
Emmanuel Bigand, professor de psicologia cognitiva, dirige o Laboratório de Estudos de Aprendizagem e do Desenvolvimento, UMR 50222, da Universidade de Bourgogne, em Dijon, França.
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